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Uso massivo de contas falsas na internet: ‘Bolsonaro News’ e as repercussões do Inquérito 4828

Uso massivo de contas falsas na internet: ‘Bolsonaro News’ e as repercussões do Inquérito 4828

O Estado de S. Paulo
22/6/2021

A repercussão sobre um perfil falso bloqueado pelo Facebook em junho de 2020 foi retomada com os resultados de investigações da Polícia Federal no bojo do inquérito que investiga os atos antidemocráticos praticados por apoiadores do Presidente Bolsonaro, em ação que corre no Supremo Tribunal Federal (Inquérito 4828). O inquérito foi instaurado em abril do ano passado para apurar a organização de manifestações defendendo atos antidemocráticos, retorno da ditadura militar, intervenção das Forças Armadas e ataques às instituições democráticas, como Congresso e STF. Hoje, ele já deixa de correr sob sigilo, considerando a decisão do Min. Alexandre de Morais, na sexta-feira, dia 4 de junho de 2021, após a Procuradoria Geral da República ter requerido o arquivamento do processo.

Segundo informações levantadas no Relatório da Polícia Federal e que também subsidiariam a decisão do Ministro Alexandre de Morais, existiria associação entre o perfil falso derrubado pela rede social (“Bolsonaro News”) e as contas do presidente Bolsonaro e de seu assessor, Tercio Arnaud. No ano passado, após extensa pesquisa realizada pelo Laboratório Forense Digital, – DFR Lab – do Atlantic Council, o Facebook coordenou ação em escala global para a remoção de perfis utilizados para disseminar desinformação e notícias falsas. Não sem surpresa, alguns deles eram registrados por residentes no Brasil, aliados do presidente Jair Bolsonaro e do chamado “Gabinete do Ódio”.

Em seu estudo, o DFR Lab identificou que múltiplas contas no Facebook e Instagram estavam associadas ao “uso inautêntico coordenado” ao redor do globo. Dessa forma, a remoção coletiva dos perfis nas redes sociais concentrou naqueles usos da internet baseados elementos enganosos sobre identidade, propósito e origem das entidades ou pessoas que representam.

Importante observar que no Brasil os registros de conexão e acessos a aplicações de internet são mantidos temporariamente por provedores de internet, conforme prazos e obrigações legais previstas no Marco Civil da Internet. Eles permitem formar a base probatória digital (e-evidence) que serve para demonstrar à Polícia Federal que o perfil falso em questão havia sido acessado a partir de endereços de IP ligados à casa do Presidente, na Barra da Tijuca no Rio de Janeiro, e ao Palácio do Planalto.

Estariam associadas a essas contas o perfil de Instagram “Bolsonaro News” e o perfil pessoal do assessor Tercio Arnaud. Segundo a relatoria da Polícia Federal, foram realizados acessos desde novembro de 2018, além de mais de 100 acessos ao perfil Bolsonaro News entre novembro de 2018 e maio de 2019. Concluiu-se que ao menos 1.045 acessos partiram de órgãos públicos, incluindo a Presidência da República, a Câmara dos Deputados, o Senado e o Comando da 1ª Brigada de Artilharia Antiaérea do Exército. Dentro dessa lista, constam acessos a partir da rede de internet sem fio do Palácio do Planalto e da casa da família Bolsonaro no Rio de Janeiro.

Nesse caso, a polêmica se refere não apenas ao uso de múltiplas contas em redes sociais em massa para disseminar mensagens e postagens relacionadas aos atos antidemocráticos e propagação de notícias falsas; mas também ao estímulo de atos de violência, como os ocorridos no episódio das publicações da extremista Sara Giromini em agosto de 2020. Na ocasião, a extremista havia utilizado suas contas em redes sociais para revelar o local em que uma criança de 10 anos, vítima de estupro no Espírito Santo, era submetida a procedimento de interrupção da gravidez no Recife. O caso foi emblemático, porque a interação em redes sociais pela extremista extrapolava os direitos assegurados a usuários de internet no Brasil. Nenhuma criança pode ter seu nome mencionado sem autorização dos pais, como também estabelecem o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Convenção das Nações Unidas sobre Direitos das Crianças de 1989, de que é signatário o Estado brasileiro. A atuação de Sara Giromini, também investigada no Inquérito 4828 no STF, deixou inequívocos rastros digitais que passarão pelo devido controle judicial.

Entre nós, o artigo 7º do Marco Civil assegura uma série de direitos para os usuários de internet. A Lei prevê garantias de inviolabilidade da vida privada, do sigilo do fluxo de comunicações e das comunicações privadas, as quais somente podem ser divulgadas ou acessadas por ordem judicial. Da mesma forma, os usuários de internet e consumidores digitais têm direito a receber informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações de internet.

Provedores de conexão e de aplicações (como apps e plataformas), por sua vez, são obrigados a manter registros por prazos fixados pela lei, e somente podem revelar as informações sobre guarda de registros de conexão e de acesso a aplicativos, como redes sociais, mediante ordem judicial. São os seguintes: 1 (um) ano para provisão de conexão, como operadoras de serviços de telefonia celular móvel e internet banda larga e 6 (seis) meses para provedores de aplicações de internet. Em ambos os casos, há possibilidade de que a autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público requeiram cautelarmente que os registros sejam guardados por prazo superiores, desde que acompanhado de ordem judicial. Autoridades de aplicação da lei no Brasil, portanto, podem solicitar que os registros de conexão e acessos a aplicativos e plataformas podem ser guardados por mais tempo, o que facilita acesso a provas digitais e a construção de sólidas investigações no curso do processo.

No caso relatado pela Polícia Federal ao Inquérito 4828, os serviços de conexão à internet na casa da família estão contratados em nome da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. A esse serviço de conexão está ligado um endereço de IP dos computadores que acessam a conta falsa Bolsonaro News. Essa conta foi descrita pelo Relatório do DFR Lab do Atlantic Council, como página que usa postagens memes para atacar ex-aliados de Bolsonaro. Seriam postagens também produzidas e publicadas durante o horário de expediente funcional do assessor do presidente no endereço IP do Palácio do Planalto.

Plataformas, como redes sociais, também têm adotado decisões de moderação de conteúdo ao aplicarem disposições de seus termos de serviços e políticas de comunidade. Regras como essas não nascem do acaso. Elas têm sido refinadas aperfeiçoadas para alcançar novas situações que os usos da internet e direitos de usuários exigem, espelhando também o desenvolvimento de padrões da indústria e políticas da internet em escala global, como na ONU/Conselho de Direitos Humanos, Organização dos Estados Americanos, OCDE e Conselho da Europa. As políticas das plataformas, por exemplo, compreendem tanto remoção de conteúdo, redução do alcance de postagens e bloqueio de perfis que sejam considerados infrativos às políticas.

Uma tendência para os próximos meses é a de que redes sociais sejam cada vez mais solicitadas a fornecer informações relacionadas a contas e perfis que tenham esse comportamento de usuários. Torna-se crucial, no entanto, que garantias do Marco Civil da Internet sejam observadas, em equilíbrio com os objetivos de persecução criminal e investigações no Inquérito 4828.

Outro aspecto interessante nesse debate levantado pelas contas falsas e comportamentos inautênticos é a relação entre políticas de plataformas e a destinação das contas de usuários. Segundo o precedente, o estudo do DFR/Atlantic Council embasou a tomada de decisão pela plataforma quanto a remoção dos perfis em escala global. Hoje o Facebook conta com uma instância de revisão de decisões mais sensíveis relacionadas a moderação de conteúdo, o Conselho de Supervisão, que também se manifestou sobre o caso da remoção dos perfis de Donald Trump, ex-Presidente dos Estados Unidos. Em maio de 2021, os membros do Conselho fizeram recomendações para que a empresa implemente o desenvolvimento de políticas claras, necessárias e proporcionais que promovam a segurança pública e respeitem a liberdade de expressão, e que revisem a medida em um prazo de 6 meses.

A definição de comportamentos inautênticos e o uso de perfis em redes sociais para incitação de ações antidemocráticas, como os que alimentam os fatos do Inquérito 4828, não deixa de ser objeto de preocupação para governança da internet e suas relações com o Direito. Acima de tudo, há também uma preocupação de como o STF conduzirá a análise das provas digitais trazidas ao processo para embasar suas futuras decisões. O Tribunal deverá, acima de tudo, observar as principais repercussões internacionais do tema e estabelecer um construtivo diálogo interpretativo entre a Constituição e o Marco Civil da Internet. Não diferentemente, ‘Bolsonaro News’ é mais um dos desafios a serem lançados.

*Fabricio Bertini Pasquot Polido, professor de Direito Internacional, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito Internacional pela USP. Foi pesquisador visitante da Universidade de Kent, Reino Unido, Universität-Humboldt zu Berlin e Instituto Weizenbaum para Sociedade Conectada. Advogado, sócio de Inovação e Tecnologia e Solução de Disputas de L.O.Baptista

Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/uso-massivo-de-contas-falsas-na-internet-bolsonaro-news-e-as-repercussoes-do-inquerito-4828/

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