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Rappi x iFood: concorrência no mercado de aplicativos de alimentação

Rappi x iFood: concorrência no mercado de aplicativos de alimentação

25/11/2020

O Consumerista

 

Por Patricia Araujo Agra

 

Na análise da aquisição da PedidosJá (controlada pela Delivery Hero) pela iFood, o CADE definiu que o mercado de pedidos online de comida caracteriza-se como o chamado “mercado de dois lados”

A pandemia do novo coronavírus forçou as autoridades do Brasil e do mundo a decretarem quarentena, limitando a circulação de pessoas nos ambientes públicos com o objetivo de restringir a disseminação da doença. Com as limitações, vários setores da economia foram afetados negativamente, obrigando inúmeras empresas a fecharem suas portas ou se adaptarem à nova realidade digital.

O segmento de entrega de comida por aplicativos – o famoso delivery – impulsionou seus serviços de entrega domiciliar, tendo sido um dos mercados mais beneficiados durante a pandemia.

Mesmo antes da pandemia, esse era um mercado que já vinha crescendo, e grandes players concorrentes, notadamente iFood, Rappi e UberEats, começaram uma corrida acirrada para atender cada vez mais restaurantes e consumidores em suas plataformas.

Artigo publicado no site Próxxima relata: “segundo o App Annie, em 2018 os consumidores fizeram 194 bilhões de downloads de aplicativos em todo mundo. Nos últimos dois anos, o número de downloads dos cinco principais aplicativos para pedir comida em cada país mais que dobrou – impressionantes 900% na Índia e 175% nos Estados Unidos, o que dá uma média global de 115%”.

Crescimento

No Brasil, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL) estimou, em 2019, um faturamento na ordem de R$ 15 bilhões no mercado de delivery nacional e um aumento de 20% em relação ao ano anterior. Para 2020, a entidade estimava cerca de R$18 bilhões. No entanto, a Food Consulting estima que esse crescimento, em relação ao ano passado tenho sido por volta de 150%.

Como não poderia deixar de ser diferente em mercado dinâmico e competitivo, essa disputa acabou no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autoridade brasileira responsável pela proteção da dinâmica concorrencial dos mercados. Segundo noticiado pela imprensa, a Rappi entrou com uma representação no CADE contra o iFood, pioneiro líder no mercado brasileiro de serviços de delivery. A alegação é que a empresa estaria firmando acordos de exclusividade com restaurantes, exigindo não só altas multas em caso de quebra contratual, como também contratos a longo prazo, a fim de excluir concorrentes do jogo, que não passariam a não ter acesso a esses restaurantes.

A análise dessas estratégias competitivas pode significar mudanças para o cenário concorrencial do mercado de serviços de pedidos online de comida por aplicativos.

Embora a análise da dinâmica concorrencial do segmento de delivery ainda seja incipiente até por ser um mercado novo, o CADE já foi exposto a esse mercado por meio da avaliação de operações de fusões e aquisições, muitas envolvendo aquisições de startups e negócios locais, que serviram de base para a autoridade avaliar as particularidades de como se dá a concorrências nessas atividades, o perfil das empresas do segmento, o nível de rivalidade, competitividade e possibilidade de entrada de novos concorrentes.

Mercado de dois lados

Na análise da aquisição da PedidosJá (controlada pela Delivery Hero) pela iFood, o CADE definiu que o mercado de pedidos online de comida caracteriza-se como o chamado “mercado de dois lados”.

Mercado de dois lados são aqueles em que a empresa oferta produtos ou serviços para dois grupos diferentes de consumidores, sendo que as demanda de cada grupo afeta o outro grupo, ou seja “que conecte os dois usuários finais, mas principalmente a relação do volume total de transações com a estrutura de preços, ou seja, como o preço é dividido entre os dois usuários finais”.

Em outras palavras, são firmas que atuam como plataformas ofertando produtos ou serviços distintos para dois ou mais grupos de consumidores diferentes, em que a demanda de um desses grupos depende da demanda de outros dos grupos.

Assim, o aplicativo de delivery será bem sucedido se conseguir agregar o maior número de restaurantes com o maior número de consumidores. Se o aplicativo tiver, de um lado, muitos restaurantes, por exemplo, mas não tiver os consumidores, de nada adianta e vice versa.

Particularidades

O CADE destacou que o mercado de delivery possui algumas particularidades:

  • Mercado concentrado em poucos competidores;
  • Expectativa de forte crescimento nos próximos anos;
  • Entrada recente de importantes players internacionais, como a UberEATS e a própria Rappi;
  • Baixa rivalidade doméstica, porém com expectativas de acirramento.

Com relação à presença de contratos de exclusividade, o CADE já manifestou preocupação com esse mecanismo. Tendo em vista que, como dito, esse mercado é caracterizado como um mercado de dois lados, com dois diferentes tipos de “clientes” a serem conquistados, contratos de exclusividade podem ser anticompetitivos na medida que podem dificultar o acesso a novos entrantes em um desses lados, o que inviabiliza a permanência no mercado como um todo.

Isso porque, embora exista uma grande e diversa rede de restaurantes em nível nacional (ou municipal como é o caso das grandes capitais brasileiras), há grandes redes de restaurantes que são altamente atrativos aos consumidores. Ao fechar esses restaurantes por meio da exigência de exclusividade, impedem outros players de ofertar esses restaurante-chaves para seus clientes, fazendo com que percam competitividade ou mesmo inviabilizando a entrada efetiva no mercado.

Para que contratos de exclusividade e outras estratégias comerciais sejam consideradas anticompetitivas, elas devem ser capazes de surtir efeitos no mercado, ou seja, de fato impedir ou dificultar outros concorrentes, ou de acessar restaurantes, ou de acessar clientes. Caso isso aconteça, menos aplicativos vão conseguir entrar nesse mercado ou vão sobreviver nele.

Neste sentido, as práticas anticompetitivas são aquelas que podem produzir efeitos deletérios ao ambiente concorrencial dos mercados, isto é, prejudicar, de forma injustificada e ilegítima o desenvolvimento de competidores, reduzindo a competitividade do setor, potencializando o aumento de custos e redução de oferta, em por consequência, ao consumidor.

No caso de uma redução nos ofertantes de serviços, consumidores e restaurantes ficam com menos opções, havendo menos opções, as empresas que ficam no mercado sentem menor pressão competitiva. Duas são as principais consequências dessa situação: os preços cobrados pelos aplicativos que conseguirem ficar no mercado tendem a subir e a qualidade do serviço prestado tende a cair.

Como já levantou o próprio O Consumerista, é alto o nível de reclamação, tanto de restaurantes, quanto de consumidores, sobre os serviços de delivery. De acordo com dados levantados pelo site, as reclamações subiram, entre 2018 e 2019, de 80 para 1.036 queixas, ou seja, houve uma explosão na quantidade de queixas de 840% de um ano para outro.

Uma das explicações para isso pode residir justamente na falta de competição nesse mercado. Quanto maior a concorrência entre as empresas, mais elas investirão em ofertar os melhores serviços e os menores preços para angariar o maior número de clientes – neste caso, restaurantes e consumidores – e assim, obter um faturamento maior.

Assim, em relação às supostas condutas cometidas pela iFood, a autoridade antitruste avaliará:

  • A participação de mercado da iFood no mercado de pedidos online de comida;
  • A capacidade de aumentar preços por parte da iFood sem que outros competidores, os restaurantes e clientes consigam reagir a esse aumento e;
  • A capacidade dos demais agentes de mercado competirem e conseguirem mais clientes e restaurantes.

Na hipótese de o CADE entender que as estratégias comerciais denunciadas são anticompetitivas, há a possibilidade de a autoridade determinar a quebra das cláusulas de exclusividade dos contratos pela iFood, ou até mesmo proibi-las de forma generalizada.

Contudo, importante frisar, que a rescisão dessas cláusulas somente será aplicada se os contratos de exclusividade celebrados pela iFood – ou por qualquer empresa – não forem considerados neutros ou pró competitivos. Se forem incapazes de causar os efeitos explicados acima como, fomentar a competição e auxiliar a entrada de quem ainda não está no mercado, nesse caso, essas cláusulas podem sobreviver.

Apesar da abertura gradual de bares e restaurantes, a corrida dos aplicativos de delivery continuará acirrada. As empresas devem tomar cuidado neste cenário, uma vez que políticas comerciais e competitivas agressivas podem ser avaliadas pelo CADE, a qualquer tempo, como potenciais práticas anticompetitivas, vedadas pela Lei de Defesa da Concorrência.

Assim, considerando o crescimento exponencial de delivery, as políticas comerciais dessas empresas, como por exemplo, as exigências de exclusividade, devem ser avaliadas de acordo com os efeitos que podem causar no mercado, de forma a não impedir que competidores cresçam, novos players entrem no mercado, preços sejam reduzidos, qualidade seja sempre melhorada e consumidores fiquem mais felizes.

Patrícia Agra é sócia da área de defesa da concorrência e compliance do L.O Baptista Advogados

 

Disponível em: oconsumerista.com.br/2020/11/rappi-ifood-aplicativos-alimentacao/

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