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Grandes consumidores e comercializadoras negociam soluções criativas para contratos

Grandes consumidores e comercializadoras negociam soluções criativas para contratos

24/4/2020

Agência Estado

 

Por Wellington Bahnemann e Luciana Collet

A expressiva redução do consumo de energia elétrica por conta da adoção de medidas de isolamento social para conter o avanço do coronavírus, acompanhada da redução de receita por parte de muitos consumidores, tem levado a empresas que atuam no mercado livre a buscarem soluções comerciais criativas para mitigar os efeitos negativos da crise e evitar a judicialização das discussões. “A maioria dos consumidores e comercializadoras compreendeu a excepcionalidade da situação”, diz o diretor de Comercialização e Gestão de Clientes da EDP Brasil, Pedro Kurbhi.

Atualmente, o mercado livre, composto por indústrias e estabelecimentos comerciais de grande porte, representa em torno de 30% do consumo de energia elétrica do Brasil. E diante das medidas de contenção da disseminação do novo coronavírus no País, boa parte dos consumidores que estão neste ambiente de contratação foi fortemente afetada em suas atividades, provocando uma redução da demanda por energia.

A interrupção ou redução das atividades levou a uma queda de 14% no consumo de energia dos clientes livres desde o início das medidas de isolamento social, com destaque para o declínio de 53% na demanda do setor automotivo, de 40% no segmento têxtil e de 34% no setor de serviços, de acordo com dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).

Com consumo menor, muitas companhias solicitaram a seus fornecedores de energia para rever as condições de pagamento da fatura. Isso porque os contratos de venda no mercado livre possuem, tradicionalmente, uma cláusula denominada “take-or-pay”, que fixa o pagamento mensal por um volume mínimo de energia a ser consumido pelo cliente, mesmo que a demanda real fique abaixo disso.

Na Engie, por exemplo, os contratos no mercado livre em geral têm flexibilidades atreladas ao consumo entre 10% a 15%. Com isso, foi possível acomodar a redução da demanda registrada por diversos clientes industriais e comerciais, conta o diretor de Regulação e Mercado da companhia, Gabriel Mann.

O executivo admite, no entanto, que houve pedidos de revisão de carga, em alguns casos associados a notificações de força maior. “A gente está analisando caso a caso, respondendo essas notificações”, segundo Mann. O diretor da Engie comentou que, em casos de flexibilização adicional, é feito algum tipo de recuperação ou contrapartida em um momento mais à frente.

O presidente da comercializadora Comerc, Christopher Vlavianos, conta que, diante da pandemia e das incertezas, muitos consumidores sinalizaram a intenção de renegociar contratos, até mesmo de forma preventiva. “Tem consumidores afetados e outros que se sentem afetados e que também querem ajuste contratual, mas não necessariamente precisam, porque, na crise, o manual diz que tem que sentar no caixa”, explica.

O executivo destacou que empresas de segmentos como shopping, têxtil e indústria automotiva são os que sofreram maior impacto e, consequentemente, cujos contratos têm sido revistos. “Vamos conversando e buscando solução. Não tem solução pronta. Tem de sentar e ver o impacto e de que forma podemos usar o caixa para ajudar o cliente, porque as empresas querem relações de longo prazo”, diz, revelando ter renegociado cerca de 30% de seus contratos de fornecimento.

A sócia do L.O. Baptista Advogados, Rebecca Maduro salienta que comercializadores possuem o dever legal de tentar entrar em acordo com os consumidores e defende que a insistência pela via negocial, em oposição à judicialização. “Não adianta espremer ao máximo o consumidor, porque ele vai entrar com medida cautelar, com arbitragem, e mercado não quer isso”, argumenta.

Rebecca afirma que uma das soluções encontradas por vendedores e compradores de energia tem sido separar a entrega física da energia prevista em contrato da questão financeira e postergar para o futuro o bloco de energia que não está sendo consumido, que passaria a ser disponibilizado no ano que vem ou em um momento definido entre as partes. “Quanto mais pra frente, melhor, porque dá fôlego para o cliente se recuperar e continuar com o fornecedor em uma relação saudável, confiável e de boa fé”, defende.

O sócio da área de energia e recursos naturais do escritório de advocacia Demarest, Raphael Gomes, que assessora geradores e consumidores que atuam no mercado livre, comenta que boa parte dos pedidos estão resolvidos negocialmente entre as partes. O especialista, que no início da crise receava por uma guerra judicial com o aumento do número de notificações da cláusula de caso fortuito ou força maior dos contratos, vê que o mercado tem se utilizado de diversos instrumentos para enfrentar o momento.

“Não tem apenas uma solução sendo utilizada. Vimos algumas negociações em que o vendedor aceita reduzir a demanda contratada e, como contrapartida, aumenta o preço no futuro ou que a fatura é parcelada. Temos visto negociações para a extensão de contratos ou operações de swap”, explica o especialista na área de energia.

Vendedores com liminares judiciais para ter preferência no recebimento dos créditos das liquidações no mercado spot, por conta das discussões sobre o risco hidrológico (GSF), estão tendo condições mais favoráveis para negociar neste cenário. Gomes afirma que algumas destas empresas estão recomprando a energia excedente dos seus clientes ao valor do preço de liquidação das diferenças (PLD), hoje no piso de R$ 39,68/MWh. “A energia excedente é liquidada ao PLD, com o vendedor recebendo 99% do valor por conta da liminar. Com isso, o cliente livre deixa de pagar pelo volume excedente e ainda recebe uma receita pela energia”, explica Gomes.

Em teleconferência sobre os impactos da Covid-19, o presidente da Engie, Eduardo Sattamini, comentou que a geradora tem assumido, em alguns casos, a liquidação a PLD, com recomposição futura. “Obviamente, não podemos financiar todo mundo, porque a não temos capacidade de financiamento de todos os nossos clientes. Em muitos casos, o que precisamos fazer é preservar esses valores mínimos de take-or-pay. É obvio que, se tivermos uma situação na qual o nosso cliente esteja numa situação em que ele está proibido de operar, precisamos ter uma flexibilidade maior e, eventualmente, rolar um pouquinho (o pagamento) dessa obrigação”, explica.

Khurbi, da EDP Brasil, diz que muito dos instrumentos utilizados para enfrentar o atual cenário já foram usados pelo setor para superar crises passadas. A diferença, desta vez, é que isso tem sido aplicado para um número maior de casos do que antes. “Olhando os contratos e os relacionamentos de longo prazo, o grande esforço que tem sido feito no mercado é ajudar os consumidores neste momento na questão do caixa”, afirma.

O momento, inclusive, tem se mostrado uma oportunidade de estreitar relacionamento por empresas que adotam estratégias comerciais distintas de boa parte do mercado. É o caso, por exemplo, da Tradener, primeira comercializadora do País. Diferentemente de seus concorrentes, a empresa curitibana não utiliza cláusula de “take-or-pay” em seus contratos de venda, mas, em contrapartida, cobra um preço mais elevado.

O presidente da Tradener, Walfrido Avila, relata o episódio recente no qual o gestor de um shopping center em Curitiba entrou em contato desesperado para negociar a conta de luz do local. “Quando ele ligou, expliquei que não precisa se preocupar porque o contrato previa que a fatura era com base no volume consumido”, diz Avila, revelando que, em muitos casos, o próprio cliente não conhece os termos dos seus contratos.

Prazo dos acordos

Gomes diz que tem visto acordos serem firmados por 90 dias, com a expectativa de encerramento da crise neste período. Já Rebecca citou acordos realizados com gatilho de demanda, tendo em vista que, mesmo após o fim da crise mais aguda, ainda não se tem clareza sobre o ritmo de retomada da economia.

“Em uma das negociações, foi estabelecido que, quando o consumo medido bater o mínimo do contrato, as partes poderiam considerar como ?início do fim?, ou seja, uma vez que o consumidor retome o consumo medido no mínimo, as condições de contrato poderiam ser retomadas em termos de preço, etc”, disse a advogada.

A sócia do escritório Rolim, Viotti e Leite Campos Advogados, Maria João Rolim, considera que as renegociações de contrato também são uma oportunidade de ajuste dos acordos à nova realidade, que pode se estender por um prazo ainda incerto. “Para ambos os lados, isso pode ser uma boa oportunidade para alongar contratos ou diminuir, porque sabemos que, mesmo que melhorar (a carga), e vai melhorar algum dia, a subida vai ser mais lenta. Então, a repactuação é a melhor solução”, argumenta.

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